Psicóloga do COB acredita que atletas sairão melhores após pandemia

  • Atarde
  • 25/05/2020 17:19
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COB

A pandemia do coronavírus afetou radicalmente a rotina normal das pessoas, também alterando a vida dos atletas de alto rendimento, que passaram a treinar em casa para os Jogos Olímpicos de Tóquio, adiados para 2021. Para entender como esses atletas assistidos pelo do Comitê Olímpico do Brasil (COB) atravessam o período de crise, incentivados a fazer o que mais estão habituados, que é a superação, entra em cena a psicóloga Sâmia Hallage, de 52 anos, especialista na área clínica e esportiva do COB.

Atuando pelo COB desde 2008, em parceria com outros colegas de profissão vinculados ao COB, Sâmia foi a três olimpíadas e a uma Paralimpíada. Integrante da comissão disciplinar formada também por profissionais voltados para o cuidado com a mente dos atletas, ela celebrou conquistas do Time Brasil como a medalha de ouro em 2008, com a equipe do vôlei feminino, a prata em 2012, com Alison e Emanuel no vôlei de praia, o ouro em 2016 com Alison e Bruno, também no vôlei de praia, e a prata com Diego Hypólito, na ginástica artística.

Nessa entrevista para o A Tarde, ela relata como o isolamento social vivido pelo mundo interfere nos níveis de estresse e ansiedade dos atletas e quais soluções são apresentadas. Nesse processo, ela destaca que o bem-sucedido trabalho realizado em sua área, por ela e outros colegas, não apenas agora, emergencialmente, mas desde ciclos olímpicos anteriores que facilitam conhecer melhor o perfil dos atletas, contribuem para atenuar a situação.

De que forma se pode definir a sua área de atuação no COB?

É uma área que engloba a psicologia clínica e esportiva. A ideia é que a gente já tem um corpo de conhecimentos bastante robustos da psicologia, que é uma ciência, e a ideia é trazer esses conhecimentos para aplicar no esporte com os atletas. Não é ver o atleta apenas como performance, é olhar para ele como ser humano que tem outros setores da vida além do esporte e poder trabalhar com todos eles. Se o atleta estiver bem emocionalmente ele vai ter uma performance melhor.

O momento atual propiciou um crescimento superior, em relação a outras épocas, da procura por orientações nessa área?

A gente já vem trabalhando com os atletas no COB desde o começo do ciclo olímpico. Tenho certeza de que nesse período do isolamento social, há situações que de uma maneira geral os atletas já enfrentavam e que foram somadas ao isolamento. Este acabou potencializando um sofrimento. Então, às vezes, a pessoa tem, é natural, todo mundo tem angústia, ansiedade, tristeza. Não dá para a gente ser só feliz, né? Faz parte da vida esses sentimentos ruins, mas, com certeza, no isolamento isso fica potencializado tanto para os atletas como para as pessoas de uma maneira geral.

Como está a demanda nesse período, em que a ansiedade pode vir a ser potencializada pelo isolamento social?

Acho que o maior gatilho de ansiedade para os atletas, agora, é a incerteza de quando eles podem voltar a treinar. Como eu expliquei numa live, a gente observou alguns períodos, logo no começo, quando eles começaram a ser impedidos de treinar e a Olimpíada ainda não tinha sido adiada. Eu acredito que foi o pior momento, porque não podiam treinar e tinham uma Olimpíada no meio do ano. Quando foi adiada e a nova data estabelecida eles deram uma relaxada. Porque entenderam que, ok, precisamos ficar parados, mas a olimpíada agora só em 2021. Agora, à medida que o tempo passa e os treinos não voltam, a ansiedade deles oscila. Alguns estão tranquilos, tentando fazer o que conseguem dentro de casa ou em algum lugar que ainda têm possibilidade de treinar. E alguns, e aí é muito individual isso, acabam também elevando a ansiedade por conta dessa incerteza. Isso não é tão diferente da sociedade geral. As pessoas estão mais ansiosas esperando o final desse período de isolamento.

Dá para ter uma noção do universo atendido por vocês, relacionado especificamente ao trabalho feito no COB?

A gente atende atletas olímpicos, todo ciclo começamos um novo trabalho com um grupo de atletas. E esses atletas geralmente são os que fazem alguma solicitação ao COB. Então alguns deles a gente já acompanha há algum ciclo olímpico e vai dando sequência ao trabalho. Outros fazem a demanda e a gente inicia. Normalmente, a gente não fala o nome dos atletas que se está atendendo. Só fala dos atletas que atendemos em outros ciclos, por uma questão ética, para não expor o nome dele ou dela. Então, cada psicólogo que está hoje trabalhando para o COB tem um grupo de atletas que é atendido durante cada ciclo olímpico.

Qual é a orientação para uma bem-sucedida travessia desse período de pandemia?

A gente está trabalhando individualmente, então cada atleta está atravessando esse período de sua maneira. Há alguns que estão mais tranquilos, cuidando da vida, vivendo seu dia a dia. Alguns mais ansiosos. Depende muito de cada caso, mas a ideia é que, de uma maneira geral, eles estabeleçam uma rotina, treinem com as condições que eles têm em casa, seguindo as orientações da comissão técnica. E que pratiquem atividades de lazer, pois lazer é importante. Para os mais ansiosos, a gente trabalha com técnicas de mindfulness mais de relaxamento (estratégia de atenção plena, foco no presente, no aqui e agora). A ideia é vivendo um dia de cada vez até que toda essa situação seja resolvida. Alguns a gente continua fazendo o trabalho que vinha fazendo, usando algumas estratégias específicas da psicologia do esporte, mas é sempre no ritmo de cada um.

Todos sairão ilesos?

Falar em sair ileso de uma fase de isolamento, depende muito do ponto de vista até do que a gente considera o que é sair ileso. É claro que as pessoas vão passar por essa fase com alguns aprendizados. Na minha percepção, eu acredito que vão sair melhores. Porque realmente a gente está precisando, acho que isso todas as pessoas, estão conseguindo parar para olhar o que que é realmente importante na vida. E talvez algumas coisas sejam diferentes no pós-pandemia.

Essa orientação varia entre os atletas de alto rendimento e seus alunos fora do COB?

Eu já fui professora universitária e agora tenho meu consultório e dou aula, um curso online de preparação mental. Na verdade, esses alunos são psicólogos do esporte, alguns já estão na área ou se especializando para entrarem nela. Na aula converso um pouco com eles sobre como lidar com os atletas nessa época. A ideia é que eles tenham um conhecimento geral para atuar com atletas. Fora isso, tem a parte deles como seres humanos que todo profissionais de saúde, médico, fisioterapeuta, psicólogo estão tentando prestar um serviço à sociedade, mas sem esquecer que também são seres humanos e têm as suas próprias vidas e angústias.

Em uma live recente a senhora disse não ter uma resposta acertada sobre como reagir na quarentena. Foi no “calor” da live, por falta de tempo e de informações mais complexas? Ou é uma questão na qual a resolução depende muito mais da cabeça de cada um atleta?

Quando a gente fala de falta de respostas ‘entre aspas’ não é que a gente não tenha uma resposta. Na verdade, o que a gente está falando é que, sim, a gente conhece o comportamento humano, a gente estuda para isso, para ajudar pessoas, mas nunca ninguém viveu uma fase de pandemia. Então, não existe já uma experiência das pessoas, dos psicólogos em relação a como tratar pessoas e atletas em pandemia. Tudo isso está sendo descoberto. O que a gente geralmente faz é tratar de pessoas em situação emergencial, mas como nunca teve uma pandemia tem muita coisa que está sendo descoberta.

Esse trabalho de base e do dia a dia teve papel decisivo para agora os atletas estarem passando, digamos, incólumes por esta crise provocada pelo coronavírus?

Eu acho que não dá para falar que tem papel decisivo. Nada tem papel decisivo, mas é um trabalho muito importante. Não só para os atletas como para as pessoas de uma maneira geral, porque a gente sabe que nesse período uma das questões que mais tão vindo à tona tem a ver com a saúde mental das pessoas. Então está crescendo o número de pessoas com transtornos mentais. Isso já vinha crescendo de uma maneira esperada pelo próprio dia a dia da sociedade moderna, mas com essa pandemia isso acelerou.

Que aprendizado vocês psicólogas e atletas estão tirando juntos e individualmente dessa situação? Isso terá influência positiva na performance deles em Tóquio-2021?

A lição é que a gente precisa se adaptar, que há coisa que estão fora do nosso domínio. Tem coisa que a gente controla e tem coisa que não. Quando a gente não consegue isso tenta se adaptar e viver com aquilo. Mas não no sentido de se resignar, mas tentar achar estratégias para tentar lidar com a situação.

Gostaria que desse mais detalhes das fases superadas e conquistas que já podemos celebrar até aqui nesse desafio que está sendo a pandemia.

A primeira fase foi de apreensão e angústia. De ansiedade porque os Jogos permaneciam em 2020. E os atletas começaram a perder as possibilidades de treinos e de preparação. Fora que o cenário mundial estava muito incerto. As fronteiras fechando, as pessoas em isolamento, as competições sendo canceladas, depois quando os jogos foram adiados e a nova data saiu todo mundo ficou um pouco mais tranquilo e agora a gente está naquela fase de esperar tudo voltar ao normal. Acho que a lição é aquela que citei antes de que tem coisa que a gente não domina, apesar do desejo de controle que a gente vive. A gente precisa achar estratégias para se adaptar e superar as dificuldades, tanto na nossa vida pessoal como na vida esportiva. E a gente pode traçar esse paralelo com os atletas, mostrando que eles fazem isso no dia a dia deles, numa competição importante. Às vezes se machucam. A superação é algo que faz parte da vida deles.

Na sua live, foi dito que o trabalho de longo prazo tem sido fundamental para momentos como esse. Se fosse de última hora, que consequências poderiam haver?

Quando a gente faz um trabalho tanto com atleta como com pacientes clínicos, a gente precisa de um tempo para trabalhar. Mudar comportamentos, se auto conhecer são processos que levam um certo tempo. Não tem mágica, que você toma uma pílula e tudo se resolve. Com atletas olímpicos a gente tem o costume de trabalhar o ciclo inteiro. Em 2020, início do ano olímpico, muito trabalho já foi feito com eles então nós já chegamos num momento em que conhece bem os atletas e trabalhou algumas questões. Com certeza é mais fácil do que começar um trabalho agora, mas isso não impede que a gente consiga começar um trabalho agora e ser bem-sucedido até 2021.

E como vocês psicólogas estão cuidando de si mesmas nessa quarentena? Melhor do que outros 'mortais'?

A gente também fica estressada, angustiada. A Nossa vida da também mudou. Além de nossos próprios sentimentos lida com os sentimentos do outro. Muitas vezes acorda e já senta no computador pra começar os atendimentos. Então tem de achar estratégias, entender que é normal estar mais angustiado, às vezes mais ansioso, às vezes mais triste. A gente está o dia inteiro em contato com a tristeza e angústia do outro, mas tem que achar uma maneira de cuidar de si, no que chamamos de autocuidado. Eu, por exemplo, gosto de acordar e fazer alguma atividade física dentro de casa mesmo. Agora mesmo estou pedalando e dando essa entrevista a você. De repente, ver um filme, ler um livro antes de dormir. No final de semana tentar se desligar, separar sábado e domingo para a família. Dar uma relaxada. Também filtrar informações em relação à pandemia e não e ficar o tempo inteiro assistindo programas, jornais e notícias. Olho para notícias boas também, porque acho que são importantes para ir se reabastecendo para a nova semana.

Por que você diz que a psicologia não salva nada e o psicólogo não vem para apagar incêndio como há alguns anos atrás?

Antigamente se achava que o psicólogo só era necessário para um atleta quando as coisas iam mal, quando tinha derrota ou algum problema. De alguns anos para cá o que se entende é que há um profissional que faz parte da comissão técnica e que o atleta precisa de preparação mental preventiva. Não só para resolver problema. Se no início da temporada há um preparador físico para deixar o atleta pronto fisicamente, um treinador quem o prepara com estratégias técnicas e táticas, um nutricionista, um fisioterapeuta e um médico que cuidam do corpo dele, ele precisa também ter alguém que faça esse trabalho mental. Desculpe a redundância, isso tem que começar no começo. Isso já mudou, hoje em dia todos os trabalhos que a gente faz, pelo menos a maioria deles, iniciam quando a equipe ou o atleta começa o ciclo de treinamento.

Em relação à solução de vocês para a insônia dos atletas na véspera das competições, não parece mais pragmática do que psicológica?

Insônia, geralmente, tem a ver com ansiedade. Quando a pessoa está muito ansiosa, ela deita na cama e os pensamentos começam a aparecer. Esse volume de pensamento e atividade cerebral pode atrapalhar no sono. Então, a gente ensina uma higiene de sono e paralelamente vai trabalhando com algumas estratégias de relaxamento, de mindfulness. E também no centro do problema, ou seja, porque que tem essa ansiedade tão elevada? Quais são os gatilhos dessa ansiedade? Porque se trabalhar os gatilhos, a gente ajuda a minimizar isso.